domingo, 1 de novembro de 2015

CRÔNICAS DE FRACASSO E FOGO

Ele era um cara gente fina, boa praça e, apesar de não ser boa pinta, sempre se dava bem com os que lhe cercavam, apesar de viver sozinho. Ele levava uma vida paradoxalmente desempolgante na sua corrida rotina. Não sei bem se ele vivia, mas ele levava a vida. Com uma mente ocupada, qualquer vida corrida pode torna-se uma jornada desempolgante.

Apesar de tudo, a realidade teimava em defrontar-se com ele, e mostrar-lhe a sua verdadeira face: o nada. Pois é, cara, com ele nada acontecia; nada aparecia; nada mudava. Era sempre a mesma morgação. A sua desempolgante vida que só empolgava na imaginação.

Mas com toda a dureza dessa mórbida realidade, ela (a realidade) corriqueiramente lhe dava uma trégua e lhe oferecia uma luz, uma nova moldura, uma janela para ver um arco-íris. Ela lhe oferecia uma novidade que empolgava, que dava certo gás para que a vida lhe parecesse encantadora.

Certo dia, numa tediosa e estressante noite de semana, atolado de trabalho (o que era absolutamente normal e constante), ele para seu carro numa praia urbana para sentir a natureza, para esperar que a natureza lhe roube o cansaço e solidão, para que a natureza lhe faça sentir ser-com-alguém no mundo; pois viver sozinho, em algum momento, cansa.

Todos os seus colegas de trabalho, tão próximos a ele no cotidiano, e tão alheios a sua vida, não são companhias. São como máquinas que se relacionam com o humano, mas em nada lhe acrescenta a sua humanidade. Não somam em nada a sua vida.

Mas naquela noite, naquele momento em que ele parou para a natureza lhe tocar, outro humano lhe tocou. Ela, ela lhe tocou a vista. Uma moça encantadora, mas comum. Seu rosto era comum, suas vestes eram comuns, seu caminhado era comum e sua vida... a sua também parecia comum.

E o que fez essa moça lhe tocar a vista? A identificação, a correspondência.

Uma vida desinteressante enxerga outra vida desinteressante e, enfim, reconhece: ninguém é sozinho no mundo.

O olhar dele seguiu os passos dela. Na sua cabeça uma voz firme e despertadora lhe diz repentina e repetitivamente: “seje homi, seje homi”. E é essa voz que faz com que, além do olhar dele acompanhar os passos dela, os seus pés também fazer o mesmo.

Ele, tomando uma atitude há anos impensável, segue a moça que lhe despertou o olhar. Aproxima-se dela e, com uma voz trêmula e tímida, lhe deixa transparecer o interesse através de palavras sem nexos. Ela, que espantosamente ver-se defronte a uma novidade, uma interrupção daquele percurso que fazia todos os dias naquela praia urbana, ao voltar do trabalho para casa, viu-se também encantada. Sem reação, ambos trocaram o número de contato.

Agora duas vidas desempolgantes confrontavam-se. Agora nenhum dos dois tinha conhecimento sobre o que fazer.

O anormal é horrendo. É catastrófico.

A vida apenas dá sedativos, vez ou outra, para que o cotidiano desempolgante não os consuma.

O que aconteceu após a isso não se sabe. O que se sabe é que os sedativos, as novidades que quebram a rotina, são as que dão conteúdo a história duma vida.

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