Ele era um cara gente fina, boa
praça e, apesar de não ser boa pinta, sempre se dava bem com os que lhe
cercavam, apesar de viver sozinho. Ele levava uma vida paradoxalmente desempolgante
na sua corrida rotina. Não sei bem se ele vivia, mas ele levava a vida. Com uma
mente ocupada, qualquer vida corrida pode torna-se uma jornada desempolgante.
Apesar de tudo, a realidade teimava
em defrontar-se com ele, e mostrar-lhe a sua verdadeira face: o nada. Pois é,
cara, com ele nada acontecia; nada aparecia; nada mudava. Era sempre a mesma
morgação. A sua desempolgante vida que só empolgava na imaginação.
Mas com toda a dureza dessa mórbida
realidade, ela (a realidade) corriqueiramente lhe dava uma trégua e lhe oferecia
uma luz, uma nova moldura, uma janela para ver um arco-íris. Ela lhe oferecia
uma novidade que empolgava, que dava certo gás para que a vida lhe parecesse
encantadora.
Certo dia, numa tediosa e
estressante noite de semana, atolado de trabalho (o que era absolutamente
normal e constante), ele para seu carro numa praia urbana para sentir a
natureza, para esperar que a natureza lhe roube o cansaço e solidão, para que a
natureza lhe faça sentir ser-com-alguém no mundo; pois viver sozinho, em algum
momento, cansa.
Todos os seus colegas de trabalho,
tão próximos a ele no cotidiano, e tão alheios a sua vida, não são companhias.
São como máquinas que se relacionam com o humano, mas em nada lhe acrescenta a
sua humanidade. Não somam em nada a sua vida.
Mas naquela noite, naquele momento
em que ele parou para a natureza lhe tocar, outro humano lhe tocou. Ela, ela
lhe tocou a vista. Uma moça encantadora, mas comum. Seu rosto era comum, suas
vestes eram comuns, seu caminhado era comum e sua vida... a sua também parecia
comum.
E o que fez essa moça lhe tocar a
vista? A identificação, a correspondência.
Uma vida desinteressante enxerga
outra vida desinteressante e, enfim, reconhece: ninguém é sozinho no mundo.
O olhar dele seguiu os passos dela.
Na sua cabeça uma voz firme e despertadora lhe diz repentina e repetitivamente:
“seje homi, seje homi”. E é essa voz que faz com que, além do olhar dele
acompanhar os passos dela, os seus pés também fazer o mesmo.
Ele, tomando uma atitude há anos
impensável, segue a moça que lhe despertou o olhar. Aproxima-se dela e, com uma
voz trêmula e tímida, lhe deixa transparecer o interesse através de palavras
sem nexos. Ela, que espantosamente ver-se defronte a uma novidade, uma
interrupção daquele percurso que fazia todos os dias naquela praia urbana, ao
voltar do trabalho para casa, viu-se também encantada. Sem reação, ambos
trocaram o número de contato.
Agora duas vidas desempolgantes
confrontavam-se. Agora nenhum dos dois tinha conhecimento sobre o que fazer.
O anormal é horrendo. É
catastrófico.
A vida apenas dá sedativos, vez ou
outra, para que o cotidiano desempolgante não os consuma.
O que aconteceu após a isso não se
sabe. O que se sabe é que os sedativos, as novidades que quebram a rotina, são
as que dão conteúdo a história duma vida.
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